A cultura da miséria e a miséria da cultura
O funk ostentação — e certo tipo de funk em geral — é tão ruim e destituído de qualidade artística quanto o sertanejo universitário e os cantores solo do tipo Luan Santana, Michel Teló e tutti quanti. Imaginar que esse tipo de estilo ou música possa vir a ser reconhecido daqui a quarenta ou cinquenta anos, como o foi o samba ou como se deu com o blues e o jazz nos Estados Unidos, é desconhecer o fato de que aquelas músicas e estilos são ruins e pronto.
O samba e o blues são resultado de transformações socioeconômicas e culturais num lugar específico e num dado tempo que possibilitaram a sua emergência e consolidação como estilo. São frutos de grandes transformações sociais e de época, num sentido positivo.
O funk ostentação e o sertanejo universitário também são frutos de mudança de época, mas num sentido negativo. São a marca expressa da falência cultural ocidental, seja no que estes estilos são em si mesmos ou, como se verifica no rock, que segue ladeira abaixo há décadas. É a falência da cultura ocidental em seu sentido mais profundo, clássico, de suas matrizes fundadoras que arrasta consigo as expressões culturais em todos os sentidos, sendo a música apenas uma delas.
A música ruim é a expressão de um lugar, de um tempo, de um tipo de vida e de uma cultura que segue se deteriorando. Não são apenas as escolas e a educação que afundou, mas certamente, a vida que brota a partir e, junto com ela. Se a classe média juvenil produziu a bossa nova e a MPB, a partir dos anos 1950 e 1960, e os clássicos hoje amplamente conhecidos, isso se deve ao solo fecundo de uma classe média que se desenvolvia num momento em que o próprio país também se projetava. A classe média, hoje, nada mais canta de novo e nem inventa nada. Pudera, ela vem se deteriorando com a deterioração da própria cultura onde está imersa.
A periferia brasileira, especialmente a de São Paulo e do Rio de Janeiro, é o bagaço resultado do desenvolvimento econômico cruamente desigual e que relegou uma parcela significativa da população a viver à margem da civilização urbana. Inexistência de saneamento básico, falta de escolas ou escolas muito ruins, ocupação forçada e imposta nos morros, cortiços e matas, como único lugar possível para se viver, e a crescente violência como resultado de tudo isso, é o saldo de um país que mal se desenvolveu ou se desenvolveu muito mal.
O samba ou a bossa nova são gêneros que emergem com as transformações de um país que saía do anonimato pra se transformar na 8º economia do mundo. A MPB se erguia no mesmo momento em que o mundo ocidental vivia uma revolução cultural que aqui se traduziu nesse gênero musical. O que estamos vendo com certa espécie de funk, especialmente estes ligados a temas de consumo ou sexualizados, é apenas a tradução da deterioração da cultura em sentidos que vão da formal-educacional, artística, e de utopia. É a música ruim cantando a tragédia da cultura.
Se a periferia do Brasil resulta daquilo que não deveria ter acontecido, mas aconteceu — desenvolvimento econômico extremamente desigual –, isso significa que ela mesma é aquilo que jamais deveria ter se admitido que fosse, mas é o lugar onde pessoas vivem miseravelmente.
O desenvolvimento que criava cultura, o american way of life, por exemplo, faliu. A sociedade do bem estar material encontrou seu termo nos limites ambientais incontornáveis e, na exclusão cada vez maior de um número geometricamente crescente de pessoas. Os rolezinhos são, nesse sentido, apenas espasmos retardatários e, tardio de uma imensa massa social que apenas agora chegou ao século 20.
O que se quer dizer é: as músicas ruins que vemos e, obrigados a ouvir, tocadas, aliás, em todos os lugares, inclusive entre aqueles geograficamente muitíssimo diferentes (coxinhas?) dos cantores que as cantam, é na verdade a tragédia de uma cultura se desfazendo sobre si mesma.
Se a cultura fermentada no desenvolvimento econômico que gerou a bossa nova e a MPB faliu, o que esperar daqueles que vieram à existência como excluídos daquele desenvolvimento e daquela cultura?
Numa última palavra, esperar que os excluídos de sempre redimam a todos é de um romantismo que já provou seus limites.